Criado e gravado durante o confinamento da primavera “Suite: April 2020” junta uma suite para piano solo e três ‘standards’ num álbum através do qual ficam registados retratos e reflexões sobre o ano inesperado que estamos todos a viver. Texto: Nuno Galopim
O confinamento que o mundo viveu na primavera fechou Brad Mehldau em casa, na Holanda, juntamente com a sua família. Das vivências, reflexões e sensações nasceu uma suite para piano solo a que chamou “Suite: April 2020” e que se apresentou assim como um dos primeiros retratos deste ano inesperado que estamos a viver fixado na forma de um disco.
O álbum, gravado num estúdio em Amesterdão pouco depois de terminada a composição, conheceu uma primeira edição limitada, numerada e assinada, cujas vendas reverteram em favor de um fundo de emergência criado pela Jazz Foundation of America (JFA). Além do próprio Brad Mehldau muitos outros contribuíram para que essa primeira edição especial fosse possível sem custos. O vinil foi oferecido, a fábrica holandesa que fez as prensagens não cobrou pelos serviços, tal como a Copenhagen Vinyl que assegurou a distribuição. A capa, criada por Barbara DeWilde, foi igualmente um donativo. E a edição “comercial”, agora disponível, reserva ainda os direitos recolhidos recolhidos para a JFA.
Se nas ações este é um disco com o objetivo de contribuir, na música “Suite: April 2020” é um ensaio de retrato na forma de uma série de peças para piano que procuram traduzir emoções que então Brad Mehldau estava a viver. Ruminações foi uma expressão que ele mesmo já usou… E se títulos como “Waiting”, “In The Kitchen” ou “The Day Moves By” sugerem o ritmo do tempo por aqueles dias vividos em confinamento e se faixas como “Remembering Before All This” ou “Uncertainty” procuram expressar reflexões sobre o momento que se vivia, já “Keeping Distance” (uma das regras de comportamento social a que o ano nos obrigou) traduz essa ideia de distanciamento físico ao separar as mãos esquerda e direita sobre o teclado… “Lullaby”, que fecha a suite, é dedicada a todos aqueles que agora dormem sem a mesma tranquilidade… O que a música pode ter de abstrato e subjetivo não perde depois com o texto do músico que domina a capa e nos convida a entender, sem condicionar, a música que o disco nos tem para mostrar.
Além da suite composta em confinamento, Brad Mehldau junta ao alinhamento do álbum três standards. “Don’t Let It Bring You Down” de Neil Young ressoa uma ideia de esperança. “New York State Of Mind”, de Billy Joel, que corresponde a uma das canções que habitam memórias antigas de Brad Mehldau, é como um canto à distância sobre uma cidade (Nova Iorque) na qual o pianista viveu vários anos. “Look at The Silver Lining”, de B.G. DeSylva e Jerome Kern encerra o trio de canções que fecham o percurso. Um percurso que, como refletia o próprio pianista no seu site por alturas do lançamento da edição limitada, herda muito de uma identidade afro-americana que a história do jazz naturalmente traduz. E daí as palavras que o músico escreveu, explicando como, e sobretudo na sequência das mortes de George Floyd, Breonna Taylor e David McAtee, não se pode ser neutro nos dias que correm. Notou então que ia refletir sobre o que era ser anti-racista, reconhecendo que tinha coisas a aprender… Quem sabe estão aí os dados para novas criações suas que, juntamente com April 2020, retratem este ano terrível.
“Suite: April 2020”, de Brad Mehldau, está disponível em LP, CD e nas plataformas digitais numa edição da Nonesuch.