Com libreto de Nick Cave e música de Nicolas Lens, “L.I.T.A.N.I.E.S” chega a disco a tempo de inscrever mais um episódio determinante na história discográfica de 2020 (representando ainda mais um momento de afirmação da vitalidade atual da ópera). Texto: Nuno Galopim

As memórias de 2020 ficarão fixadas das mais variadas maneiras na música. Quer na forma de canções (Charli XCX ou Michael Stipe, entre tantos mais) de música instrumental que traduz o clima que todos vivemos (Brad Mehldau) ou em discos que, mesmo envolvendo temáticas e composições que não traduzem necessariamente o ano que vivemos, o confinamento, o afastamento, a ansiedade, acabam por espelhar, pelas formas apresentadas ou pela história da sua criação, o modo como este ano afinal os moldou e se entranhou nas suas identidades. Curiosamente Nick Cave surge associado a dois títulos que traduzem esta ideia. O primeiro deles, Idiot Prayer, é a “banda sonora” de um recital para voz e piano que apresentou numa sala vazia e que, depois de transmitido online, chegou às salas de cinema. Agora, e a fechar o ano, eis que surge outra criação que traduz trabalho em tempo de confinamento. Mas aqui, ao invés de Idiot Prayer (que envolveu equipas técnicas mas nele teve o único músico em cena), há mais gente envolvida. E, na verdade, o ponto de partida está em Nicolas Lens, compositor belga que, há alguns meses, ligou a Nick Cave (com quem tinha já trabalhado na ópera Shell Shock, de 2016), desafiando-o a escrever 12 litanias.

         Nick Cave aceitou e ele mesmo contou já que, antes de tudo o mais, foi informar-se sobre o que era uma litania. É uma oração, um rogo ou uma prece “em que se pede a Deus ou aos santos para intercederem pelos fiéis” (segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). E logo aí sentiu um chamamento. É que, reconheceu ele mesmo (segundo um texto na Rolling Stone) que, afinal, escrever litanias era o que tinha estado a fazer toda a sua vida. E entregou-se à escrita de um libreto que juntou uma dúzia de poemas através dos quais traça uma linha narrativa que envolve “o nascimento, o despontar, a fraturação e o renascimento de um ser humano”, e lança “petições a uma entidade divina, solicitando um reconhecimento cósmico”.  

         Às palavras de Nick Cave juntar-se-ia em L.I.T.A.N.I.E.S a música de Nicolas Lens, que sublinha e eleva a um patamar de beleza maior estas 12 litanias. Uma música discreta e algo minimalista, melancólica, mas não assombrada, mais suave do que tensa, mais tranquila do que intensa, interpretada por um pequeno ensemble com madeiras, metais, cordas, harpa, percussão e piano, envolvendo depois as vozes de Clara-Lane Lens, Denzil Delaere, Claron McFaddeen e Nicholas Lens Noorenbergh. A gravação decorreu num momento em que o confinamento mantinha os estúdios fechados, pelo que Nicolas Lens gravou músicos e vozes em sua casa (no bairro de Dansaert, no centro de Bruxelas), terminando depois os trabalhos de mistura já em estúdio.

         L.I.T.A.N.I.E.S é um dos mais belos entre os discos de 2020. E não só é exemplo de como a ópera é um espaço vivo e criativamente vibrante como vinca o modo como os cruzamentos de experiências e linguagens, transcendendo as vetustas barreiras de género de outros tempos, se tem revelado como uma das mais importantes características na base de algumas das mais interessantes criações de ópera do século XXI. Em caso de dúvida espreitem-se criações notáveis como Tomorrow in a Year criada pelos suecos The Knife, Dr. Dee de Damon Albarn, de Ainadamar de Osvaldo Golijov ou Lost Highway de Olga Neuwirth (aqui cruzando linguagens e narrativas com as pistas do cinema), e isto sem desmerecer as criações mais próximas das heranças da tradição clássica mais canónica como The Tempest de Thomas Adès ou Doctor Atomic de John Adams, igualmente exemplos maiores do fulgor que se vive por estes terrenos no nosso tempo.

L.I.T.A.N.I.E.S” de Nicolas Lens e Nick Cave, está disponível em 2LP, CD e nas plataformas digitais numa edição da Deutsche Grammophon.

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