A cantora portuguesa é uma das vozes convidadas em “Seasonal Shift”, belíssimo disco de Natal, mas com personalidade bem vincada e distante da mera revisitação dos paradigmas habituais da quadra, que os Calexico nos dão a escutar este ano. Texto: Nuno Galopim
Já havia canções de Natal, mas a edição de discos dedicados à quadra tornou-se uma tradição importante quando o LP entrou no quotidiano de muitas casas. Nos anos 50 foi inclusivamente um espaço importante de mercado, raros tendo sido os nomes maiores do firmamento da música popular a não ter passado, uma ou outra vez, pelo estúdio para gravar sobretudo versões de canções que se fizeram standards da quadra. Frank Sinatra, Elvis Presley, Peggy Lee, Doris Day, entre tantos outros, são exemplos a recordar. No final dos anos 60 o hábito foi-se perdendo, sendo recuperado anos mais tarde, nos anos 80, num mesmo natal que escutou os Wham! a cantar Last Christmas, em que víamos os Frankie Goes to Hollywood a usar iconografia da quadra no teledisco de The Power of Love, escutávamos Prince em Another Lonely Christmas e encontrávamos uma multidão de músicos, comandada por Bob Geldof e Midge Ure, a fazer de Do They Know It’s Christmas? o paradigma para uma nova etapa de relacionamento da cultura pop/rock com a recolha de fundos para grandes causas. Esse Natal, em 1984, foi uma exceção, embora não tenha representado a única ocasião em que, nos setentas e oitentas menos dedicados a estes trilhos, a quadra também teve expressão pop. Basta aí recordarmos, por exemplo, o momento (em 1978) no qual David Bowie se juntou a Bing Crosby para cantar Little Drummer Boy ou o dueto de Kirsty MacColl com os Pogues em Fairytale of New York, em 1987. Os anos 90 assistiriam a um mais frequente reencontro com este espaço de tradição. E, depois da viragem do milénio, tornou-se mesmo frequente vermos bandas e artistas em campos mais “alternativos” a gravar versões de standards ou a criar as suas canções de Natal. De Sufjan Stevens ou dos Low aos LCD Soundsystem ou The Knife, a tradição ganhou novo fôlego. E 2020 não escapa há regra. Há novos discos de Natal em cena. E um dos melhores da nova colheita é assinado pelos Calexico e tem Gisela João entre os convidados.
Tem por título Season Shift e, desde logo fica claro que este é mais um espaço de reflexão sobre o espírito da “saison” do que uma mera expressão de antigas tradições. Tal como tem acontecido em vários discos de Natal, o alinhamento tanto junta versões como originais. Mas nas versões a coisa aponta a visões nascidas para além dos “habituais” standards mais clássicos. Estão por isso aqui novas abordagens a Happy Xmas (War Is Over) de John Lennon e Yoko Ono e Christmas All Over Again de Tom Petty, assim como Mi Burrito Sabanero, do venezuelano Hugo Blanco. E depois há colaborações como as que se escutam com Bombino em Heart of Downtown, com Camilo Lara (a alma do projeto Mexican Institute of Sound) em Sonoran Snoball ou com Gisela João em Tanta Tristeza. A identidade multicultural, marcada pela geografia do sul do Arizona (com o México ali perto) da dupla que há muito junta Joey Burns and John Convertino, habita estas expressões menos canónicas, mas sempre honestas e verdadeiras, de um imaginário natalício que assim não esconde o “onde” do lugar onde as canções nascem mas também o “quando” todas elas ganharam forma. E entre as mensagens de Natal, em várias línguas (português inclusive) e de diferentes origens, que escutamos numa segunda abordagem a Mi Burrito Sabanero que encerra o alinhamento, há uma voz que deseja a todos que o ano que vem seja melhor do que este… De forma clara, fica assim fixada a origem de uma vontade de celebração que não esconde o cenário difícil em viveremos todos este Natal.
“Season Shift”, dos Calexico, está disponível em CD, LP e nas plataformas digitais, numa edição da City Slang.