David Bowie: o crepúsculo de um deus

O documentário que observa a criação dos últimos discos de Bowie e a peça de teatro a que chamou “Lazarus” passou há dias na RTP2 e está disponível na plataforma RTP Palco. A história, que se cruza com memórias, é contada pelos seus colaboradores. Texto: Nuno Galopim

Quando se fala dos grandes feitos da obra de David Bowie ora se focam atenções nas muitas visões e reinvenções que viveu ao longo dos anos 70 ou no percurso de sucesso planetário que talhou nos oitentas. Mas a verdade é que nos seus últimos cinco anos de vida a dimensão do que criou e nos deixou está longe de ser coisa menor. Entre o seu regresso aos discos em 2013 e o adeus que ficou fixado no álbum que lançou em 2016, três dias antes de nos deixar, há um arco de cinco anos no qual por um lado Bowie revisitou e assimilou memórias do seu percurso de vida e obra e, por outro, voltou a enfrentar desafios novos que, como ele mesmo chegou a descrever, nasciam de uma vontade em viver naquele ponto em que, comparando com o momento de entrar na água, numa praia, começamos a sentir que ficamos fora de pé. Com um pé no passado e outro “fora de pé” os cinco últimos anos de Bowie deram-nos dois álbuns magníficos – The Next Day e Blackstar – um single visionário criado com a orquestra de Maria Schneider e uma aventura no teatro que cumpriu, com Lazarus, o seu sonho antigo de criar um musical. A história destes cinco anos, contada por aqueles que com ele partilharam estes desafios criativos, é a proposta de David Bowie – Os Últimos Cinco Anos, documentário de Francis Whatley que a RTP 2 transmitiu recentemente e que agora está disponível na plataforma RTP Palco (podem ver aqui).

            Apesar de focado no intervalo de tempo que medeia entre o início das sessões que geraram The Next Day e a edição de Blackstar, o documentário começa por nos colocar em plena Reality Tour, quase dez anos antes, notando como ele mesmo se mostrava diferente do habitual nessa extensa e feliz digressão e como um ataque cardíaco, depois de um concerto no Hurricane Festival, na Alemanha, o obrigou a deixar os palcos, vivendo depois inesperados anos de silêncio logo a seguir. Um silêncio na verdade apenas interrompido por pontuais colaborações com os Arcade Fire, David Gilmour, os TV on The Radio ou os dinamarqueses Kashmir (a que o documentário não alude, mas não faz mal contar como foi).

            Tony Visconti e outros músicos que colaboraram na gravação de The Next Day surgem depois reunidos num espaço que recria as sessões de trabalho. Regressam às canções. E contam como Bowie os convocou e pediu sigilo. O mesmo dispositivo é recriado depois para contar a história do single que em 2014 gravou com Maria Schneider e no qual mergulhou numa aventura jazz que valorizava a presença do instrumento com o qual começara a sua relação com a música: o saxofone. O mesmo acontecendo depois, já sob o protagonismo do grupo de Donny McCaslin, para nos relatar a criação de Blackstar. Se a história dos discos define a criação da música nova destes últimos cinco anos de vida, as palavras dos realizadores dos telediscos criados para esses dois álbuns aprofundam um retrato da visão multidisciplinar da obra de Bowie na qual a palavra “colaboração” sempre soube ser bem conjugada pelo maestro que, no fim, tinha a palavra decisiva sobre o caminho que as coisas podiam ou não tomar. Mesmo assim fica clara a aceitação de Bowie face às sugestões de músicos e realizadores, o mesmo de podendo dizer do modo entusiasmado com que viveu a criação e ensaios da peça de teatro musical que surgiu numa altura em que a doença já ditava um fim possível que, de resto, ficaria evidente em outubro de 2015 quando gravou o teledisco de Lazarus.

            Estes cinco anos são o objeto do documentário. Mas entre o relato desses factos em construção, o filme mergulha em momentos vários da obra de Bowie, ora recordando o cantor folk de Space Oddity, a estrela glam, o ator que dominava o palco da Diamond Dogs Tour ou o controverso Thin White Duke que chega depois. Essas frestas de memória juntam alicerces à história dos seus últimos cinco anos e, no caso de The Next Day, revelam como esse reencontro com os discos em 2013 na verdade estava definido sobre uma vontade nova de Bowie em viver a sua música como uma expressão mais autobiográfica. E basta escutar as memórias berlinenses de Where Are We Now ou a reflexão sobre a fama em The Stars Are Out Tonight para notar que não o fez como nostalgia, mas para debater consigo mesmo os caminhos que o tinham levado até ali e o que agora estava a criar.

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