David Bowie “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars” (1972)

Editado a 16 de junho de 1972 o álbum “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars” transformaria para sempre o estatuto de David Bowie e a própria história da música popular. Texto: Nuno Galopim

Há discos que ganham tamanho peso icónico e acabam representando aquilo pelo qual lhes é reconhecida a importância histórica de tal forma que quase nos esquecemos por vezes de neles reparar que há mais do que a ideia central que lhes dá o “rótulo”. O álbum de 1972 de David Bowie é disso um bom exemplo. Com o título completo The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars, acabou eleito pelo tempo como não apenas um marco de viragem na carreira de Bowie (foi-o, de facto, elevando-o a um patamar de estrelato global), um episódio maior na história dos anos 70 (o que parece ser incontestável) e ainda paradigma de referência do glam rock… E é aqui que a coisa fica algo aquém do tal “rótulo”, na verdade cabendo a Ziggy Stardust uma abertura de horizontes e toda uma convocação de referências bem mais vasta que a que um ano depois se materializa em Aladdin Sane, disco cuja identidade sonora na verdade traduz uma pontaria mais afinada em campeonato glamZiggy, mesmo assim, indicava esse caminho e lançava (juntamente com discos seus contemporâneos dos T-Rex e Roxy Music) as linhas pelas quais se definiria o movimento. Mas é muito mais. Junta ecos de várias tradições, do melodismo pop ao fulgor elétrico do rock, de ecos dos blues ao elegante trabalho de arranjos de cordas, sem esquecer uma lógica teatral (que na verdade é peça fulcral na construção de uma linha narrativa que une as canções que dão voz à criação de uma personagem: o alienígena que visita a terra com uma mensagem de paz e amor mas acaba consumido pelos seus próprios excessos) e todo um programa identitário que vincaria mais ainda o seu peso na história.

O manager Tony De Fries ensinara recentemente a David Bowie que, para ser uma estrela, tinha de se comportar como uma. Passou a andar sempre acompanhado de um guarda costas, deslocando-se invariavelmente de limousine. O acesso da imprensa ao músico passou a ser controlado, que é como quem diz, filtrado, dificultado. E as fotos autorizadas eram escolhidas a dedo… Tudo isto numa altura em que, para o cidadão comum, Bowie era ainda um David quase-ninguém… Ao comportamento pop star faltava, contudo, o disco que o justificasse. Disco que nasceu, em 1972, na forma de The Rise and Fall of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars, um álbum coeso, de escrita certeira, com uma história “conceptual” a servir-lhe de medula: a de um poeta visionário que, com ajuda alienígena, acaba transformado em estrela rock’n’roll, num mundo à beira do apocalipse.

O conceito, que David Bowie descreveu como um “cruzamento de Nijinski com a Woolworth’s” (uma cadeia de grandes lojas), juntava uma série de ingredientes devidamente assimilados. Andy Warhol, Lou Reed, Iggy Pop, Marc Bolan, T. S. Eliot, o teatro kabuki, Kensai Yamamoto, o Lengendary Starship Cowboy, Kubrick (em particular filmes como A Laranja Mecânica, 2001: Odisseia no Espaço) e todo um conjunto de reflexões sobre identidade de género e sexual que teriam tremendo impacte cultural e social… Ziggy Stardust, personagem, nascia de uma amálgama de figuras, histórias, imagens e sons, a primeira das criações de Bowie pensadas para dar corpo a uma música e, consequentemente, representá-la. E entre 1972 e 73 Bowie e Ziggy eram quase indistinguíveis.

Na essência, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars é um álbum de rock eloquente, elegante, uma primeira face mais elaborada e introspectiva, uma segunda eléctrica, ostensiva, contagiante. Bowie fez discos melhores, mas este talvez tenha sido o que maior impacte cultural teve no seu tempo.

Há opções de última hora que, por vezes fazem a diferença. E foi dado o entusiasmo de Dennis Katz, da RCA Records, que Starman, uma canção tardia na génese de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars, acabou não só integrada no alinhamento do álbum (substituindo aí uma versão de Round and Round de Chuck Berry) como foi inclusivamente escolhida para ser o single de apresentação do novo álbum. Havia entusiasmo e uma certa fé na canção. Mas ninguém podia imaginar, quando o single foi lançado em abril de 1972, que pouco tempo depois seria o trampolim para o arranque definitivo da carreira de sucesso de David Bowie (que, na verdade, não conhecera até então nenhum outro episódio de reconhecimento discográfico além do êxito pontual de Space Oddity, em 1969). Trampolim que, todavia, só foi ativado quando Bowie apresentou a canção no Top of The Pops da BBC. Foi uma atuação diferente, desafiante (nas questões identitárias) e avassaladora na música. E teve um efeito de furacão na geração de músicos. Foi a 5 de julho de 1972… Peter Murphy (Bauhaus), Boy George (Culture Club), Siouxsie Sioux (Siouxsie & The Banshees), Ian McCulloch (Echo & The Bunnymen), Marc Almond (Soft Cell), Gary Kemp (guitarrista dos Spandau Ballet), Nick Rhodes (teclista dos Duran Duran), Robert Smith ou Lol Tolhurst (respetivamente o vocalista e o baterista dos The Cure), eram apenas alguns dos jovens espectadores que viram o programa em direto. E esse foi claramente o primeiro dia do resto das suas vidas.

Transportando uma história (que em tudo se ajustava ao quadro narrativo proposto pelo álbum (mas também com leitura possível sobre a felicidade que pode haver no ato de conhecer pessoas), Starman não podia ser melhor veículo para a apresentação da personagem de Ziggy Stardust, o primeiro dos grandes alter egos que Bowie criaria ao longo dos anos 70. Musicalmente a canção parte diretamente dos caminhos percorridos no anterior Hunky Dory, concedendo espaço de respiração ao som de uma guitarra acústica e aos arranjos orquestrais, a guitarra elétrica abrindo contudo caminhos para novas ideias que se seguiriam.

Apesar de editado como single de antecipação do álbum em abril foi só em julho, na sequência da apresentação no Top of The Pops, que Starman se viu transformado num hino do seu tempo. O look de Bowie (que claramente colocava em cena um novo protagonismo da imagem) e o poder irresistível da canção garantiram os argumentos necessários à transformação há muito esperada. O single surgiu com o tema Suffragette City, outra das canções do alinhamento do novo álbum, que seria editado dois meses depois, em junho. A edição portuguesa deste single, surgida mais tarde, incluiria como lados B os temas John I’m Only Dancing e Hang On To Yourself. Com o tempo Starman tornou-se num dos clássicos maiores de Bowie e é das suas canções mais revisitadas por outros, com versões assinadas por nomes como os 10.000 Maniacs, Of Montreal, Culture Club, Mates of State ou Seu Jorge.

Já Hang on To Yourself, outro dos clássicos que encontramos no alinhamento do álbum nasceu de uma experiência de curta duração a vida dos Arnold Corns, a banda que David Bowie criou tendo como co-protagonista do designer Freddi Burretti, com quem desenvolveria pouco depois as primeiras expressões da imagem de Ziggy Stardust. Depois de um primeiro single lançado em abril de 1971, um segundo 45 rotações sob o nome da banda surgiria em junho, recuperando Hang On To Yourself, canção originalmente apresentada no lado B do primeiro single dos Arnold Corns e, mais tarde, regravada para o alinhamento de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars numa versão mais consistente e convincente.

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