Assinado por Brett Morgen, o mesmo que já nos deu um belo documentário sobre Kurt Cobain, “Moonage Daydream” é um retrato de David Bowie que procura olhar sobretudo para o seu pensamento, não tropeçando na armadilha de ser uma mera biografia. Texto: Nuno Galopim

“Tudo é transitório. Será que isso importa? Será que isso me incomoda?”… As palavras são de David Bowie. E a teatraliade da sua voz acentua os jogos de sentidos que convocam, sobretudo quando integradas num fluxo de imagens, pensamentos e memórias que, mais do que procurar contar a sua história, nos transportam antes ao âmago das suas grandes demandas. Demandas pelos caminhos, rumos, alcance e significados da sua arte, pela (boa) gestão do tempo, pelo sentido da vida. É isso Moonage Daydream, o documentário de Brett Morgen – o mesmo que em tempos mergulhou nas entranhas das memórias de Kurt Cobain (este, por sua vez, admirador de Bowie) – que agora chega às nossas salas de cinema. Uma experiência a pedir, como o próprio Bowie sugeria, que não se perca tempo, já que estará em cartaz apenas uma semana, e em formato IMAX.
Todo o filme segue os caminhos de quem trabalha sobre found footage. Ou seja, este é um documentário todo ele feito apenas de material de arquivo, que o realizador encontrou, fatiou e rearranjou para ordenar a história (e as ideias) que connosco quer partilhar.
Desde entrevistas de televisão (sobretudo da década de 70) a vários outros instantes em que a voz surge em off, juntando depois uma coleção incrível de imagens ao vivo, sobretudo dos tempos da histórica Ziggy Stardust Tour, a Isolar 2 de finais dos anos 70, a Serious Moonlight e a Glass Spider dos anos 80 e a Sound + Vision de 1990), elementos de telediscos, fragmentos de filmes em que Bowie participou (como The Man Who Fell to Earth, de Nicolas Roeg) ou de documentários (como Ricochet, que o acompanhou no oriente nos tempos de Let’s Dance). Há depois pequenas pérolas como o histórico especial de televisão Cracked Actor, excertos da peça O Homem Elefante (que Bowie protagonizou na Broadway) ou incursões por espaços de trabalho (como as míticas sessões em Berlim) ou de vida pessoal (em fotos com Iman, sendo ostensiva, contudo, a omissão do primeiro casamento). Imagens que se cruzam com outras, construídas para o próprio filme, que se juntam num puzzle que ganha sentido e que, apesar do foco numa grande viagem cósmica pelo pensamento de Bowie, não deixa de desenhar um arco narrativo cronologicamente arrumado (valorizando todavia os anos 70 e, em parte, os 80, votando o pós-90 a meia-dúzia de referências).
Há peças e e etapas que ficam de fora, como praticamente todo o percurso pré-Space Oddity (diz-se apenas que Bowie foi um ‘mod’ nos anos 60), os Tin Machine e todo o arco entre 1997 e 2013… Mas, volto a sublinhar, Moonage Daydream não é uma biografia. É um retrato. E um retrato de autor. Que junta pedaços de filmes como Metrópolis, O Sétimo Selo, A Laranja Mecânica ou 2001 Odisseia no Espaço como tijolos que acrescentam ideias e referências a esta construção. Vale ainda a pena sublinhar a dimensão do trabalho de recriação música, contando com o próprio antigo colaborador Tony Visconti a remostrar e reinventar canções e temas instrumentais, encontrar do neles novos de pontos de vista que acentuam a vertigem deste olhar sobre Bowie. Imperdível!
Um pensamento