David Bowie “The Next Day” (2013)

O sucessor de “Reality” surgiu após uma longa ausência e nasceu durante dois anos de trabalhos que decorreram em estúdios de Nova Iorque sem que ninguém desse conta que David Bowie estava a gravar um novo álbum com canções inéditas. Texto: Nuno Galopim

Há dez anos que Bowie vivia (discograficamente) quase em silêncio. Depois da inesperada interrupção da Reality Tour (a poucos dias de uma passagem pelo Porto, que seria cancelada) os anos sucederam-se longe das atenções, salvo em pontuais episódios como foram as pontuais colaborações com os Arcade Fire, TV On The Radio, Scatlett Johansson, ou os dinamarqueses Kashmir. Até que, estava ainda 2013 a despontar (foi a 8 de janeiro, dia de aniversário), surgiu uma canção nova e, com ela uma notícia. Um novo álbum vinha a caminho. Absoluta surpresa, mais espantosa ainda sendo a revelação quando se soube que o disco havia nascido durante sessões de trabalho durante os dois anos anteriores, em Nova Iorque e… em segredo (coisa rara na idade da comunicação instantânea). Ao som de “Where Are We Now?”, canção repleta de memórias, reencontrámos a voz e um autor sem receio de mostrar as suas rugas, observando à distância os dias vividos em Berlim nos anos 70 e refletindo sobre o presente, consciente do tempo que passou.

A canção – que deu a Bowie o momento mediático mais eufórico e transversal em mais de vinte anos – abriu caminho para um disco que, mesmo não replicando em mais nenhum instante o modelo da balada subtil e frágil que se revelava em “Where Are We Now?”, acaba por traduzir a essência mais profunda de um autor que, sem escapar ao presente que aborda em algumas das letras. Ali constrói uma narrativa feita de revisitações de momentos e épocas pelas quais a sua obra passou (atitude que era já presente nos seus discos desde “hours…” (1999)e evidenciada nas imagens do teledisco que então acompanhara “Thurdsay’s Child”.

Memórias, uma vez mais, sem o recurso fácil à nostalgia. A guerra e quem a faz surgem em “How Does The Grass Grow “e “I’d Rather be High”, que reflete sobre o que fica em cada combatente depois de regressar dos campos de batalha. Há cenários distópicos no tema-título (ecos aqui dos dias de “Diamond Dogs”), um herdeiro natural de um “Scary Monsters”. Há delinquentes (e em seu torno um certo magnetismo) em “Dirty Boys”, canção cujos sons transportam ecos dos dias de “Young Americans”. Por sua vez “You Feel So Lonely I Could Die”, uma das mais belas canções do álbum, recorda as formas elegantes do clássico “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”. Auto-centrado e auto-referenciado, “The Next Day” aceita apenas uma mais evidente assimilação de ideias (e linguagens) de outras paragens quando avança por terrenos que se aproximam dos de um Scott Walker (que há muito se admiram mutuamente) em “Heart”, assombrosa balada que fecha o alinhamento.

Na produção surgia Tony Visconti, um velho parceiro de muitas outras ocasiões, surgindo também ele na lista dos músicos convidados (tocou, por exemplo, guitarra e baixo), onde figuraram ainda nomes como os de Earl Slick, Gail Anne Dorsey, David Torn ou Sterling Campbell. A capa, que traduz também olhares sobre o passado do próprio Bowie (na verdade é uma intervenção sobre o trabalho gráfico do clássico “Heroes”, de 1977, foi criada por Jonathan Barnbrook, que trabalhara já com Bowie nos álbuns de estúdio que editara depois da viragem do milénio.

O regresso, após dez anos de silêncio, fazia-se com o mais evidente reencontro de Bowie com memórias de facetas rock que explorara nos anos 70, continuando de certa forma a lógica de pontes entre passado e presente que explorara antes em “hours…” (1999), “Hethen” (2001) ou “Reality” (2003), e até mesmo o belo “Toy” (inicialmente previsto para o ano 2000 mas só editado vinte anos depois, já postumamente). “The Next Day”, mesmo tendo aberto algumas frestas a outras linguagens (como na colaboração com James Murphy na remistura de “Love is Lost” disponibilizada depois num disco complementar incluido num repackage), é por isso um disco bem diferente do tom visionário e exploratório que abriu diálogos com novas expressões e músicos de jazz no seguinte “Blackstar”. Mas ninguém na verdade imaginava, em 2013, os caminhos que o iriam levar ao sucessor de “The Next Day” (2016) nem à notícia triste que esse disco em si guardava.

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