Nada do que se cria se perde… tudo se transforma

Gravado no ano 2000 mas recusado pela editora, o mítico álbum “Toy” chega finalmente às lojas de discos numa edição individualizada. Aqui encontramos Bowie a olhar para aquele que fora, sem deixar de vincar o veterano em que então se tornara. Texto: Nuno Galopim

A ideia de escrever direito por linhas tortas também se pode aplicar aos mortais e às suas criações. É o que se passa com David Bowie e o álbum “Toy” que, guardado em gavetas desde o ano 2000, finalmente vê a luz do dia duas décadas depois, editado agora de forma individualizada num momento em que se assinala a passagem dos 75 anos sobre a data do nascimento. E convenhamos que não podia haver edição mais ajustada ao momento. E porquê? Porque “Toy” é, de toda a obra gravada de Bowie, o disco em que mais claramente se fixa não só uma ideia de olhar sobre o passado mas também o vincar do tempo que passou. E, perante uma data “redonda”, a ideia acaba por sublinhar texto e contexto.

Primeiro a ideia (e o drama). Em 1999, depois de uma sucessão de vertiginosas abordagens ao presente e de novos desafios assumidos no gume da invenção, David Bowie fez de “hours…” o primeiro momento de uma nova etapa na qual decidiu olhar sobre si mesmo, encarando o passado numa perspetiva traçada a partir do presente que então vivia. Da pietá que ele mesmo protagonizava na fotografia da contracapa às imagens do teledisco de “Thursday’s Child”, nas quais encarava um “eu” de outros tempos (algo que seria retomado em “The Stars Are Out Tonight, 14 anos depois), passando por evidentes reflexões sobre ecos dos tempos de “Hunky Dory”, o disco abria uma nova fresta e via de comunicação entre presente e passado. Quis então Bowie reforçar essa mesma relação com o seu passado num projeto seguinte para o qual, contando com a solidez da (magnífica) banda que então o acompanhava, resolveu regravar canções de um tempo que muitos haviam ignorado. Focou-se sobretudo em memórias dos primeiros singles e de outras composições criadas, sobretudo nos anos 60, umas delas, na origem, traduzindo o desnorte de quem não tinha ainda encontrado uma identidade. Revisitadas, num tempo em que, pelo contrário, em Bowie ninguém há muito podia questionar as noções de identidade ou expressões de “autor”, as canções que tinham cruzado o tempo quase anónimas ganhavam novo fulgor, viço e capacidade de comunicar. De resto, quando se fez então à estrada para apresentar algumas das canções de “hours…” já levava consigo uma nova versão de “Can’t Help Thinking About Me”, um single esquecido de 1966. Contudo, e com o alinhamento de “Toy” gravado e pronto a ganhar forma como disco, a editora para a qual então trabalhava (a Virgin) não mostrou aparentemente interesse no projeto e não lançou o álbum. Bowie mudou de cada. Fundou a sua editora (a ISO Records), mas na hora de se estrear como editor optou por criar um novo álbum (“Heathen”), deixando os ecos de “Toy” surgir em lados B, faixas adicionais em edições especiais, e pouco mais…

Com o passar dos anos “Toy” transformou-se num mito, mesmo perante a edição de um bootleg que procurava recriar o disco nunca editado… Até que, em finais de 2021, integrado na caixa “Brilliant Adventures”, que junta a obra de Bowie de 1992 a 2000, eis que finalmente as canções de “Toy” ganham vida “oficial”, surgindo agora em edição individualizada, acrescentando ao álbum uma série de takes adicionais que permitem reencontrar etapas da sua própria gravação. A pulsão elétrica que Bowie tinha desenvolvido e afinado em alguns dos momentos de “hours” (e que  retomaria depois tanto em “Reality” como “The Next Day”) define o corpo das novas visões que estas canções de outros tempos ganham em “Toy”. O músculo de “Can’t Help Thinking About Me” ou “I Dig Everything”, a elegância clássica de “Karma Man” ou “Baby Loves That Way”, a maravilha durante muito tempo esquecida que é “Conversdation Piece” e a dimensão teatral de “London Boys” (aqui a piscar olho a ecos do álbum de 1967) são apenas algumas das (belas) pistas que fazem do encontro com “Toy” um momento de delícia que não deixa de lançar uma questão desconcertante: porque ficou este disco na gaveta em 2000? Talvez a inexistência de uma mais dinâmica cultura de relacionamento com memórias da cultura pop/rock que as primeiras décadas do século XXI entretanto cimentou (basta ver o poder das séries de arquivo de Dylan ou dos Rolling Stones) não deu confiança à editora perante a ideia de um álbum que “olhava para trás”… Enfim. De más opções está a história da música cheia. Não houve um executivo da Polydor que recusou os Beatles há precisamente 60 anos, em inícios de janeiro de 1962?… Nada de novo, portanto. Faz parte.

“Toy”, de David Bowie, está disponível em formato de 6 x 10” LP, 3 x CD e nas plataformas digitais, numa edição da Warner.

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